Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP)
Coordenador da Graduação da FGV DIREITO RIO
É possível pensar diferente o direito recorrendo aos mesmos esquemas de pensamento que o criaram? Por que pensar diferente o direito? Para quê? São questões atuais que surgem motivadas pelas limitações pragmáticas do direito contemporâneo. O foco excessivo sobre a regulação, em detrimento da compreensão do mundo, pode ser uma das causas do déficit de legitimidade e eficácia do direito. Tal fato suscita um reenquadramento do seu objeto. E assim voltamos à questão que nos atormenta há séculos: o que é o “direito”? Em meio a tantas especulações filosóficas, as experiências históricas e o estudo das culturas jurídicas dão-nos informações relevantes.
O Brasil não tem tradição nos estudos comparados das culturas jurídicas. Aqui e ali encontramos capítulos de livros que abordam determinado instituto jurídico brasileiro confrontando-o com um ordenamento jurídico estrangeiro. O enfoque é geralmente orientado para a dogmática e, muitas vezes, é feito sem qualquer rigor metodológico. O resultado é a abundância de textos inconsistentes, de raciocínio protocolar, sem originalidade e de pouca serventia para o jurista inteligente.
Felizmente, este não é o caso deste livro de autoria de Ângela Kretschmann que tenho a honra de apresentar e recomendar aos leitores brasileiros. Este fascinante livro, de fácil e agradável leitura, inaugura a Coleção Culturas Jurídicas e vem a somar-se ao movimento jurídico-literário brasileiro que se dedica ao estudo do direito desde uma perspectiva cultural e comparada aplicada a um contexto global. Esta abordagem desafia as formas tradicionais de se pensar e de se ensinar o direito. Afinal, para compreender o fenômeno jurídico em sua diversidade não basta ter como referência apenas a experiência vivida em nossa cultura.
O estudo das culturas jurídicas estrangeiras tem sido objeto de pouca reflexão entre os juristas brasileiros. Esta opinião é compartilhada, sobretudo, por aqueles que acreditam no caráter “nacional” do nosso direito – ignoram (ou fingem ignorar) que muitas das normas jurídicas veiculadas pelo nosso ordenamento são importações de modelos estrangeiros. Outros ainda não se sentem motivados a estudar um direito que não seja aquele com o qual opera cotidianamente. É como aprender uma nova língua. É cansativo e exige muito esforço físico e intelectual. Muitos não estão dispostos a fazer este sacrifício. A conseqüência disto é a perda de competitividade dos juristas brasileiros no cenário global.
Esta realidade contrasta com aquela que encontramos em outros países. No âmbito da Europa, por exemplo, os governos estimulam o estudante de direito a complementar a sua formação jurídica em outros países europeus a fim de adquirir não só o domínio sobre outros idiomas, mas também um contato efetivo com outras culturas jurídicas. Os centros de pesquisa e os cursos de verão na área do direito comparado são cada vez mais numerosos. O direito comunitário exerce um papel central na aproximação entre as experiências jurídicas próprias do civil law com aquelas do common law. O direito muçulmano, por razões geopolíticas, atrai a curiosidade dos juristas europeus. Nos Estados Unidos, motivações puramente econômicas e financeiras aumentam a demanda pelo conhecimento do direito chinês. O Canadá, por sua vez, afirma-se como um centro de referência para a formação jurídica bilíngüe e multicultural.
O novo mundo do direito é para juristas poliglotas e conhecedores de mais de uma cultura jurídica. Ele exige de nós o alargamento das nossas fronteiras cognitivas a respeito do fenômeno jurídico, além de uma maior capacidade para dialogar com outras visões de mundo. Ao conhecermos outras formas de perceber e conceber o direito, exercitamos a alteridade e confrontamo-nos com exemplos que nos ajudam a demarcar a especificidade do nosso próprio direito. Eis aqui uma grande motivação para os estudos comparados.
Sabemos que a convergência de sentidos, motivada pela intensificação das relações internacionais, enfraquece o viço de antigas tradições jurídicas, mas, de outro lado, fortalece o desejo de preservar as diferenças. O “Ocidente” e o “Oriente” são expressões que simbolizam este paradoxo. Marcam diferenças, ao mesmo tempo em que apresentam pontos de contato. Esta ambigüidade causa-nos perplexidade. Talvez porque tenhamos nos tornado indivíduos demasiado binários, incapazes de admitir as intermediações possíveis entre a razão e a emoção, entre a ordem e o caos, entre o “nós” e o “outro”. As formas estereotipadas com as quais enxergamos o mundo fazem-nos cometer uma série de equívocos a respeito das culturas jurídicas tidas como “estranhas” a nós, e não simplesmente “estrangeiras”. O dogma do orientalismo, tão bem sublinhado por Edward Said, amplifica esta distorção.
É preciso querer descobrir as culturas jurídicas por nós desconhecidas a fim de vislumbrar novas possibilidades de pensar o direito contemporâneo. O livro de Ângela Kretschmann ajuda-nos a perceber a importância deste “querer”. Nele, constatamos como a cultura jurídica da Índia, com o seu sistema de castas, conflita com o tipo moderno e ocidental de sociedade. Lá, cada comunidade possui direitos pessoais que lhe são próprios, especialmente os direitos de família, independentemente da localização de seus membros. O dharma, conjunto de deveres aos quais cada casta deve observar, não coincide com a idéia de direito que nós temos. Na verdade, diz Ângela Kretschmann, “a palavra ‘direito’ sequer existe em sânscrito, e os hindus não conhecem o conceito de regras de comportamento sancionadas por um constrangimento físico”. Portanto, traduzir dharma como “direito” é desfigurá-lo, tornando-o imprestável para a compreensão da cultura jurídica hindu.
As diferenças são evidentes. Na extração à fórceps de um sentido que seja inteligível para a cultura jurídica ocidental, o objeto de conhecimento de um direito oriental tende a perder as suas características fundamentais. A análise comparada do direito muçulmano, conhecido em árabe como Sharia, reforça esta tese. Aqui, a religião ocupa um lugar central. O Corão é a fonte primeira, seguido da Sunna que relata a maneira de ser do Profeta Maomé e do Idjmâ que revela o consenso da comunidade de juristas sobre as regras do Corão e da Sunna. A idéia de soberania não se filia à doutrina de Jean Bodin. O poder soberano advém de Alá sem o qual qualquer outro poder político será ilegítimo. Isto tem reflexos na idéia de autodeterminação dos povos, ressalvada pelo Islã. A incompatibilidade entre a democracia como expressão da soberania do povo e os ideais islamistas resta evidente.
A cultura chinesa, por sua vez, ignora as leis quando estas atentam contra a tradição. Para Ângela Kretschmann, ela “sempre abraçou o ideal de uma ‘sociedade sem direito’”. A base da ordem social seria ideológico-moral antes que administrativa e política. É por isto que, para a autora, uma visão de mundo tipicamente ocidental institui um direito diferente daquele das sociedades orientais, mais centradas no grupo e não no indivíduo. Assim, a despeito das influências homogeneizadoras do sistema de mercado ocidental, os direitos individuais ocupariam um lugar menor nas culturas jurídicas orientais na medida em que estas tendem a optar pela supressão da individualidade em benefício da coletividade.
Todos esses elementos parecem interpor obstáculos à universalidade do direito. Entretanto, para Ângela Kretschmann, a diversidade cultural “constitui um valor agregador para a eficácia dos direitos, assim como põe a questão do diálogo como fonte igualmente de agregação”. Os direitos humanos são aqui assumidos como fontes de dissenso e, ao mesmo tempo, de estímulo para este diálogo intercultural. Eles nos impelem para o exercício da alteridade, fazendo-nos seguir adiante no projeto de construção de uma sociedade global pluralista. Na leitura da obra de Ângela Kretschmann fica a sensação de que há muitos ocidentes e orientes em nossas sociedades e que cada direito encontrará sempre algo em comum em meio a tantas diferenças. Resta saber se estas diferenças constituem um obstáculo ao diálogo em torno da universalidade dos direitos humanos. É o que a autora pretende responder. Cabe ao leitor descobrir.
Esperamos que esta obra de Ângela Kretschmann, que trata da universalidade dos direitos humanos na complexidade de um mundo multicivilizacional, possa estimular os professores, estudantes e demais juristas a encontrar um caminho mais promissor para a formação jurídica dos brasileiros e para o próprio país. Conhecer os direitos do mundo e exercitar o diálogo intercultural é condição para se renovar a promessa do direito: a de construção de um mundo mais justo e pacífico.
Evandro Menezes de Carvalho
Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP)
Coordenador da Graduação da FGV DIREITO RIO